Esse
comentário é para os nossos alunos do seminário de teologia, e também para
pessoas que querem estudar a bíblia pessoalmente e ter um bom conhecimento
acerca dela. Que seja bem proveitoso esse estudo sobre o Evangelho de João!
Evangelho segundo
João
QUESTÕES INTRODUTÓRIAS INTRODUÇÃO
I – Quem escreveu esse livro
sobre Jesus?
Ao lermos juntos o evangelho
segundo João, uma questão crucial aparece: Quem escreveu esse livro sobre
Jesus? Será que foi João, filho de Zebedeu, ou seja, um discípulo e testemunha
ocular? Durante séculos era convicção indubitável da igreja de Jesus que esse
evangelho era obra do apóstolo João. Depois, porém, manifestaram-se dúvidas a
respeito dessa certeza, a começar pelo teólogo inglês Evanson, em 1792, que
atribuiu o evangelho de João a um filósofo platônico do séc. II. Desde então a
controvérsia sobre a ―autenticidade‖ de nosso evangelho não se acalmou mais.
Não podemos expor aqui essa controvérsia em toda a sua amplitude, porém temos
de fornecer ao leitor uma introdução às questões. Afinal, leremos o evangelho
de maneira muito diferente se estivermos convictos de que é o apóstolo João que
está falando a nós do que se tivermos de supor que um homem desconhecido da 2ª
ou 3ª geração estaria nos apresentando sua concepção sobre Jesus na forma de um
evangelho.
Em primeiro lugar cabe-nos
ouvir:
1 – O que o próprio
evangelho afirma sobre seu autor.
a – Enquanto o estilo epistolar
da época fazia com que os autores das cartas do NT – uma significativa exceção
é justamente 1João – se apresentassem nominalmente no início de suas missivas,
falta o nome do autor em todos os evangelhos, também no de Lucas. Contudo,
sendo ―autor erudito‖, Lucas pelo menos expressou num prefácio algo a respeito
de si mesmo e de seu trabalho. Em João (assim como em Mateus e Marcos) falta
qualquer afirmação direta sobre a identidade do autor.
b – Embora nosso evangelho não
tenha um ―prefácio‖, ele traz um pós-escrito no capítulo 21. Esse capítulo 21
descreve acontecimentos pascais que não aconteceram em Jerusalém, mas na
Galiléia. Faz parte deles também o diálogo do Ressuscitado com seu discípulo
Pedro (vs. 15-19). Em seguida a esse diálogo consta: ―Então Pedro, voltando-se,
viu que também o ia seguindo o discípulo a quem Jesus amava, o qual na ceia se
reclinara sobre o peito de Jesus, e perguntara: Senhor, quem é o traidor?‖ (v.
20). E agora um grupo de pessoas, que não conhecemos mais detalhadamente,
atesta: ―Este é o discípulo que dá testemunho a respeito destas coisas e que as
escreveu; e sabemos que seu testemunho é verdadeiro‖ (v. 24). Essa informação
declara um fato decisivo. Nosso evangelho foi escrito pelo ―discípulo a quem
Jesus amava‖. Esse discípulo tem de ser um dos doze apóstolos, uma vez que
somente eles estiveram presentes na última ceia de Jesus. Em todos os casos,
aquilo que leremos em conjunto é proveniente de uma testemunha ocular, de um
homem do círculo de discípulos mais próximos, o qual gozava de uma intimidade
especial com o Senhor.
c – Será que podemos definir
com mais precisão quem era esse homem do círculo dos Doze? O discípulo, a quem
se refere o atestado do pós-escrito, aparece aqui, como também em Jo 20.2ss,
diretamente em companhia de Pedro. Em Atos dos Apóstolos, porém, João aparece
ao lado de Pedro (At 3.1; 4.13). Do mesmo modo, Paulo em Gl 2.9, considera
João, ao lado de Pedro, uma ―coluna‖ na igreja primitiva. Portanto, se nosso
evangelho apresenta um ―discípulo a quem Jesus amava‖ nessa ligação com Pedro
(também na cena de Jo 13.23s), todo leitor do evangelho precisa ver nele o
apóstolo João.
d – Contudo, não seria possível
que esse ―discípulo a quem Jesus amava‖ fosse uma figura livremente inventada,
simbólica, do ―discípulo verdadeiro‖? Com certeza o seria se ele ocorresse no
evangelho apenas de uma forma simbólica genérica. Todavia, no evangelho são
atribuídas ações bem concretas justamente a esse ―discípulo‖. Visivelmente o
texto refere-se um homem bem concreto do círculo dos apóstolos. W. Michaelis
aponta para uma realidade singularmente importante: ―O relato sobre a última
ceia, no qual foi inserido Jo 13.23ss, faz parte do acervo consolidado da
tradição sinótica. Isso significa que a totalidade do cristianismo da época em
que surgiu o evangelho de João sabia que a última ceia de Jesus com seus
discípulos representava um fato histórico, e que igualmente sabia quem esteve
presente naquela ocasião. Diante desses leitores, que autor poderia ousar
inserir uma figura ideal fictícia num relato sobre a última ceia? Sim, que
autor daquele tempo teria sido capaz de até mesmo imaginar isto? Essa saída
parece ser a pior de todas as soluções possíveis.‖
e – Acrescenta-se mais uma
constatação. Nosso evangelho não é parcimonioso no uso dos nomes de apóstolos.
Simão Pedro, André, Filipe, Natanael e Tomé são mencionados várias vezes.
Somente João e Tiago jamais aparecem no evangelho citados pelo nome! Isso
somente é compreensível se o próprio João for o autor, que tem receio de falar
de si mesmo citando expressamente o próprio nome. No entanto, quem reconheceu João
no ―discípulo a quem Jesus amava‖ – e os primeiros leitores do evangelho tinham
de chegar a essa conclusão de maneira muito mais direta que nós hoje – esse
também compreenderá a maneira delicada com que João fala de si no evangelho e
sugere sua própria conversão no cap. 1.
f – Por fim, não se pode
menosprezar também a asserção logo no início do evangelho: ―Vimos a sua glória‖
(Jo 1.14). Nada dá a entender que o autor tivesse a intenção de que esse ―ver‖
deveria ser entendido somente como um ―ver intelectual‖, o qual ele partilha
com todos os cristãos. Essa hipótese é até excluída por 1Jo 1.1, onde a mesma
testemunha conta que, além de ―ouvir‖ e ―ver‖ a Jesus, até o ―apalpou com suas
mãos‖. Considerando que em Jo 20.29 ele imagina expressamente cristãos que ―não
viram, e creram‖, não é cabível que o destaque do próprio ver do autor em Jo
1.14 seja diminuído e esvaziado.
g – Não há dúvida de que o
autor desse evangelho expressa de maneira reservada, porém muito clara, que ele
é João, o discípulo e apóstolo, o filho de Zebedeu.
Por conseqüência, qualquer
negação da autoria de João levanta necessariamente uma grave acusação contra o
autor e os editores deste evangelho. O autor desconhecido, com um método que
tão somente mereceria o adjetivo de astuto, teria tentado criar em seus
leitores a impressão de ser o apóstolo João. E o grupo de editores do cap. 21
ainda daria cobertura a essa ilusão, com a expressa asserção da veracidade do
evangelista, reforçando assim conscientemente a ilusão dos leitores de que eles
estariam lidando com o discípulo João. Uma acusação dessas contra o autor e os
editores do evangelho segundo João teria de ser alicerçada sobre razões
incontestáveis que demonstrem de modo irrefutável que o apóstolo João não pode
ser o autor do evangelho. Será que existem essas razões?
O fato de que elas realmente
não podem existir já decorre da circunstância de que pesquisadores como F.
Godet, T. Zahn, A. Schlatter e outros estão convictos de que o apóstolo João é
o autor desse evangelho. Diante de provas realmente inequívocas a favor da
não-autenticidade do evangelho de João eles também teriam de se curvar.
2 – O que acontece com a
atestação eclesiástica do evangelho de João?
Abordemos, porém, mais de perto
as perguntas e constatemos inicialmente o que acontece com a atestação
eclesiástica do evangelho de João.
a – A notícia direta mais
antiga sobre o surgimento do evangelho de João ocorre em Ireneu, o mais
importante pai apostólico da igreja antiga. Ireneu é oriundo da Ásia Menor e em
178 d.C. tornou-se bispo de Leão, no Sul da França. Em sua obra principal
―Contra as Heresias‖ ele declara que João, o apóstolo, teria vivido na Ásia
Menor até a época de Trajano (98-117 d.C.). ―Depois (após os sinóticos) também
João, o discípulo do Senhor, que também se reclinara sobre o seu peito, por sua
vez publicou um evangelho, enquanto vivia em Éfeso na Ásia Menor.‖ Esse
evangelho seria dirigido especialmente contra o gnóstico Querinto,
contemporâneo do apóstolo, e contra os nicolaítas.
De onde Ireneu obteve seu
conhecimento? Ele se apóia no bispo Policarpo de Esmirna, que aos 86 anos
morreu como mártir, em 155 ou 166. Ireneu conheceu Policarpo em vida. Não
somente se recorda de que Policarpo mencionou João e outros discípulos de
Jesus, mas ainda se recorda de detalhes do que Policarpo ouviu de João a
respeito de Jesus, de seus milagres e seu ensino.
Logo a
notícia de Ireneu sobre João e seus escritos possui um fundamento sólido. Ela
se alicerça sobre as informações de uma pessoa que ainda manteve contato
pessoal com o apóstolo João.
b – Acontece que a esse
testemunho de Ireneu contrapõe-se uma declaração de Papias, citada por Eusébio
em sua História Eclesiástica (III,39), em um prefácio à obra sobre as ―palavras
do Senhor‖. O que chama atenção no comentário de Papias é que cita duas vezes
um ―João‖. Uma vez ele aparece numa lista dos apóstolos conhecidos. Depois é
mencionado um ―velho João‖ ao lado de um Aristião, do qual não temos outras
informações. Portanto, será que houve dois homens com o nome de João, que eram
conhecidos dos informantes de Papias, dos quais Papias podia obter notícias
seguras sobre Jesus?
Muitos pesquisadores
responderam afirmativamente a essa pergunta. Por isso fazem a distinção entre
um ―presbítero‖ João e o ―apóstolo‖ e filho de Zebedeu. Conseqüentemente,
pensam que deve ter sido esse ―presbítero João‖ que viveu em Éfeso, em idade
avançada, nos dias de Trajano, redigindo o evangelho. Por razões
compreensíveis, ele rapidamente teria sido confundido com o conhecido apóstolo
João, ao qual teria sido atribuído tudo o que na verdade apenas poderia ter
valido para o ―presbítero‖.
Contudo, mesmo que essa
suposição fosse correta, não ficaria solucionada a verdadeira dificuldade, por
causa da qual o presbítero João foi saudado com certo alívio como autor desse
evangelho. Pois o problema não reside tanto na afirmação de que justamente o
filho de Zebedeu teria escrito o evangelho segundo João, mas sim no fato de que
o autor teria sido discípulo e testemunha ocular. E justamente isso não muda se
o segundo João for o autor do evangelho, pois esse nem é um ―presbítero‖. Em
Papias, o termo grego ―presbýteros‖ não designa um cargo eclesiástico,
mas a participação na primeira geração que ainda conheceu o próprio Senhor.
―Quando, porém, chegava de viagem alguém que tinha seguido aos velhos (aos ―presbýteroi‖),
sempre indaguei pelas palavras dos velhos (―presbýteroi‖), o que André
ou Pedro afirmaram ou o que Filipe ou Tomé ou Tiago ou João ou Mateus ou
qualquer outro dos discípulos do Senhor disseram.‖ É exatamente dessa maneira
que esse segundo João é chamado de ―o velho‖ (―presbýteros‖). Logo,
também ele faz parte da primeira geração. Por isso ele também é designado, da
mesma maneira que André, Pedro, etc., como ―discípulo do Senhor‖. Portanto ele
andou, como André, Pedro e os demais, com Jesus e é testemunha ocular e ouvinte
direto. Somente por isso é que os informantes de Papias podem dar valor ao que
ele ―diz‖, e equipará-lo com o que André, Pedro, etc. ―disseram‖. Em outras
palavras: Ainda que tenha existido esse segundo João e que ele tenha redigido o
evangelho, esse livro foi composto por uma pessoa da primeira geração, por um
discípulo e testemunha ocular. A ―questão joanina‖ de forma alguma recebe,
assim, uma ―solução‖ simples.
No entanto, será que Papias de
fato pensou em dois homens diferentes com o nome de João? Isso se torna
extremamente improvável, tão logo nos conscientizamos de que a ambos é dada
exatamente a mesma caracterização. Ambos são ―velhos‖ e ambos são ―discípulos
do Senhor‖. Logo, ambas as frases de Papias devem estar falando da mesma
pessoa. Por que, então, a dupla menção? Pois bem, apesar da igualdade da
designação, há em ambas as declarações de Papias uma diferença, que deve ser
considerada, a saber, a diferença no tempo verbal da declaração. Na série de
apóstolos citados em primeiro lugar o verbo está no passado: ―Eles disseram‖.
Em relação a Aristião e João, no entanto, aparece a forma do presente: ―Eles
dizem‖. Não podemos perder de vista o objetivo de Papias. Ele visa mostrar-nos
seus fiduciários, dos quais ele próprio aprendeu. E entre esses fiduciários ele
distingue dois grupos. Aos do primeiro grupo ele podia perguntar o que André,
Pedro, etc. lhes ―disseram‖ no passado. Junto aos do segundo grupo ele podia se
informar o que ―dizem‖ agora os discípulos do Senhor, Aristião e João. Ou seja,
ele conhece pessoas que no passado tiveram contado com todos os apóstolos,
entre os quais obviamente também está João. Porém conhece igualmente pessoas
que agora ainda tinham a oportunidade de falar com os últimos sobreviventes da
primeira geração. Além de Aristião, esses sobreviventes incluem também o ―velho
João‖. Justamente por ter se tornado particularmente idoso entre os discípulos
do Senhor, ele recebeu o nome honorífico ―o velho‖, com o qual ele também se
apresenta em sua 2ª e 3ª carta.
A tradição eclesiástica, que
por meio de Ireneu remonta ao discípulo de João, Policarpo, atribui
inequivocamente o evangelho ao apóstolo João e não está sendo enfraquecida, mas
fortalecida pelas declarações de Papias de que dispomos.
3 – Será que Marcos (Mc
10.39) refuta a autoria de João?
Entretanto, será que a autoria
do filho de Zebedeu não é refutada de uma maneira muito simples? Na realidade,
em Mc 10.39 é profetizado o martírio para ambos os filhos de Zebedeu. Para
pesquisadores críticos, essa profecia obviamente constitui um ―vaticinium ex
eventu‖, i. é, uma profecia que foi colocada na boca de Jesus somente
porque João de fato foi executado nos primeiros tempos, assim como seu irmão
Tiago. Porém, será que dispomos de uma prova qualquer que seja convincente
acerca desse martírio precoce de João? Não é o caso. Atos 12.2 somente fala da
execução de Tiago. Por ocasião do ―concílio dos apóstolos‖ (At 15), João ainda
se encontra com o apóstolo Paulo, sendo uma das colunas da igreja de Jerusalém
(Gl 2.9). E quem quer que tenha escrito o ―pós-escrito‖ desse evangelho, jamais
poderia ter apontado, em Jo 21.22, para uma vida especialmente longa do
apóstolo, se todos soubessem da morte de João nos primeiros tempos.
Jesus anunciou a todos os seus
discípulos que sofreriam por causa do Seu nome (Mt 10.17-22; Jo 16.1s). Em Mc
10.39 Jesus, portanto, não visa destacar o sofrimento futuro dos filhos de
Zebedeu como algo extraordinário. Está anunciando a ambos a sorte geral dos
discípulos, porque haviam-no interrogado sobre o lugar de honra no reino de
Deus. Contudo, o caminho concreto do sofrimento de cada um dos discípulos
permanece em aberto. O cálice e o batismo do sofrimento estavam reservados a
todos os discípulos, ainda que para cada um deles o sofrimento tivesse uma
forma distinta. Conseqüentemente, Mc 10.39 não comprova necessariamente uma
morte precoce de João pelo martírio.
As dúvidas sobre a
autenticidade do evangelho de João, porém, não brotam dessas observações
esparsas. Há outras razões subjacentes ao fato de que tantos teólogos
repetidamente contestam a redação apostólica desse evangelho. Elas se situam na
diferença de João para os ―sinóticos‖, que forçosamente chama a atenção de todo
leitor atento da Bíblia. É dessa questão que trataremos agora num item
específico.
II – João e os evangelhos
sinóticos
1 – Esquema da atuação de
Jesus
Há uma diferença flagrante no
esquema da atuação de Jesus. Nos sinóticos forçosamente temos a impressão de
que essa atuação durou apenas cerca de um ano e transcorreu completamente na
Galiléia. Somente uma única vez durante sua atuação pública Jesus vem para
Jerusalém, para um passá que lhe acarreta a morte.
Em contrapartida, de acordo com
o exposto por João, Jesus vai logo no início de sua atuação ao passá em
Jerusalém (Jo 2.13), atuando ali e na Judéia. Obviamente João também tem
conhecimento de uma atuação reiterada de Jesus na Galiléia (Jo 1.43-2.12;
4.43ss; 6,1ss). Contudo, repetidamente (Jo 5.1s; 7.10ss; 10.22ss) Jesus se
encontra em Jerusalém para as grandes festas, antes de marchar solenemente para
dentro da cidade para o último passá (Jo 12.12ss). Os discursos e as
controvérsias decisivas com Israel sucedem em Jerusalém. Conforme essa
descrição de João, a atuação pública de Jesus deve ter durado cerca de três
anos.
Nenhum dos ―evangelhos‖ tem o
objetivo de nos fornecer uma ―biografia‖ de Jesus no sentido moderno. Também
João seleciona, da plenitude do que haveria para relatar acerca de Jesus (Jo
20.30; 21.25), aquilo que poderá conduzir seus leitores de forma singular para
a fé ou fortalecê-los nela. Também o seu evangelho é ―proclamação‖. Contudo,
enquanto os sinóticos não dão valor à exatidão histórica da ―moldura‖, mas
estão tomados pela importância de sua ―matéria‖, João se mostra como o
discípulo e testemunha ocular direta, relatando involuntariamente o transcurso
cronológico da atuação de Jesus de tal maneira como de fato aconteceu.
2 – Divergência dos
sinóticos
Em vista dessa diferença, não
causa surpresa que João divirja dos sinóticos também no material apresentado
pelo seu evangelho. É bem verdade que João informa sobre a atividade de Jesus
na Galiléia, descrevendo o milagre da multiplicação do pão e como Jesus anda
por sobre o mar. Contudo, em João procuraremos em vão as palavras e parábolas
de Jesus, tão conhecidas dos sinóticos. Muitas curas, exorcismos e atos de
poder, dos quais os evangelhos sinóticos estão repletos, não se encontram em
João. Pelo que parece, João pressupõe o conhecimento dos outros evangelhos na
igreja. Não repete o que a igreja já sabia, nem sequer a instituição da santa
ceia. Em troca, ele fornece atos e discursos de Jesus que os sinóticos não
relatam, pela simples razão de que não dirigem seu olhar para Jerusalém. Os
três grandes milagres (cura de um enfermo no tanque de Betesda, cura de um cego
de nascença e ressurreição de Lázaro), que se revestem de importância especial
por causa da luta de Jesus com os círculos dirigentes de seu povo, acontecem na
área de Jerusalém. Do mesmo modo, os grandes discursos e controvérsias nos
capítulos 5, 7, 8 e 10 são integralmente determinados pela conjuntura de
Jerusalém.
Em conseqüência, não cabem
objeções a essas partes do evangelho pela mera razão de que apenas João as
traz. Da plenitude do material, apenas uma fração foi selecionada e anotada
pelos evangelistas, do que justamente João tem consciência (Jo 20.20; 21.25).
João apresenta em seu evangelho aquilo que servia para explicitar a atuação
decisiva em Jerusalém. Na diversidade do material, pois, não se configura uma
prova da ―não-autenticidade‖ desse evangelho.
3 – Os discursos de Jesus,
um contraste entre João e os sinóticos?
No entanto, se entendemos e
reconhecemos tudo isso, será que não existe apesar disso um contraste
intransponível entre João e os sinóticos nas apresentações dos discursos de
Jesus? Seria possível que Jesus falou ao mesmo tempo da forma como relatam os
sinóticos e assim como o constatamos em João? Em João há longos discursos que
têm por tema o próprio Jesus, sua pessoa e sua importância. Lá nos sinóticos,
seguindo o estilo da Palestina, ocorrem ditos concisos e marcantes, parábolas
breves e concretas, e tudo gira em torno do reino de Deus e da atitude correta
diante de Deus e do semelhante. Não poderia ser que unicamente a apresentação
sinótica mostra o Jesus genuíno, histórico, enquanto o ―Cristo joanino‖
representa flagrantemente uma livre invenção do evangelista justamente em seus
discursos?
Cabe-nos ser muito cautelosos
com o veredicto do que ―poderia‖ ou ―não poderia‖ ter sido histórico. É bem
compreensível que as palavras e parábolas de Jesus, como trazidas pelos
sinóticos, eram facilmente memorizadas justamente na Galiléia e no povo
simples, sendo transmitidas nesse contexto. No entanto, é imperioso que por
isso Jesus também tenha falado da mesma forma em Jerusalém e no confronto com
os grupos dirigentes? Não seria plausível que aqui estivesse em jogo, de
maneira bem diferente, também sua pessoa, sua autoridade, a fé nele, a forma
como vem ao nosso encontro, logo na primeira ida de Jesus à capital, no
episódio da purificação do templo e no diálogo com Nicodemos? Afinal, esses
―discursos de Jesus‖ – inclusive na sinagoga de Cafarnaum! – justamente não são
―pregações‖, mas sempre ―diálogos‖, discussões duras, nas quais as respostas de
Jesus deixam perceber as perguntas e objeções de seus adversários, mesmo quando
João não as insere expressamente.
Indiretamente, os próprios
sinóticos evidenciam que Jesus de fato também falou de maneira ―diferente‖.
Eles têm conhecimento de ―longas pregações‖ (Mc 6.34) e de uma proclamação de
Jesus que durou vários dias (Mc 8.2). Nessas ocasiões, porém, não é possível
que Jesus tenha alinhavado durante horas apenas ditos e parábolas breves.
―Longas pregações‖ requerem exposições com nexo, assim como João relata no cap.
6 também em relação à atuação de Jesus na Galiléia.
É necessário que nos detenhamos
ainda mais nesse ponto, uma vez que também comentaristas que sustentam a
autoria do apóstolo João nesse evangelho apesar disso consideram os discursos
de Jesus como livre elaboração do evangelista. F. Büchsel opina: ―O quarto
evangelho nos traz a realidade histórica de Jesus apenas nos moldes da
compreensão, mais precisamente da compreensão adquirida posteriormente pelo
evangelista, cuja liberdade bastante marcante se contrapunha à compreensão
meramente histórica.‖ W. Wilkens fala da ―incrível liberdade do quarto
evangelista diante da tradição, fundada sobre a autoridade do testemunho
autêntico.‖ H. Strathmann torna-se ainda mais explícito: ―Costuma-se dizer que
os discursos joaninos de Jesus ‗teriam passado pela pessoa de João‘. Correto!
Contudo, o que significa isso? Os discursos de Cristo em João são discursos de
João sobre Cristo. João serve-se deles como forma para pregar sobre Cristo,
motivo pelo qual também ocasionalmente os discursos de Jesus, inclusive na
forma, repentinamente transitam para discursos sobre Jesus. Em outras palavras:
Em sua exposição, João não presta tributo ao historicismo, mas ao princípio da
estilização proclamatória.‖
Por trás dessas declarações
certamente existem observações corretas. Isso vale sobretudo com vistas à
linguagem peculiar no evangelho de João, que também influi no linguajar de
Jesus nessa apresentação. ―É freqüentemente constatado que em todos os lugares
dos escritos joaninos é possível encontrar o mesmo linguajar, independente se o
que fala é Jesus ou João Batista ou João, filho de Zebedeu. Entre os discursos
de Jesus e as cartas de João não existe diferença de estilo‖. Nesse ponto
pode-se perceber nitidamente que em longos anos de trabalho de pregação
diversificada João assimilou dentro de si tudo o que havia vivenciado com seu
Senhor, reproduzindo-o agora com o seu linguajar.
Diante disso, porém, cumpre
levantar uma pergunta bem decisiva: Onde fica, nesse caso, o limite entre
―testemunho histórico‖ e ―elaboração espiritual‖? Será que realmente estamos
lidando com o próprio Jesus ou com um personagem que o evangelista também
retrata depois, a partir dessa ―compreensão adquirida posteriormente‖? Quando Büchsel
pensa que ―[quem] queria compreender Jesus a partir daquilo que ele podia saber
dele no tempo em que viveu, de acordo com João necessariamente o tinha de
compreender mal‖ e ―que a impressão da atuação histórica como tal simplesmente
não leva nenhuma pessoa a crer em Jesus‖, então os ―judeus‖ estariam plenamente
desculpados por não terem compreendido a Jesus naquele tempo, rejeitando-o.
Nesse caso, a conhecida palavra de Jo 1.14 teria de ser artificialmente
reinterpretada: A palavra se tornou carne, e mais tarde, depois de sua
ressurreição e ascensão, nós também vimos a sua glória. Se João descreve Jesus
totalmente de acordo com sua compreensão espiritual posterior, então nos
tornamos, de um modo questionável, dependentes de João e da exatidão de sua compreensão,
e não temos mais a ver realmente com Jesus, mas de fato apenas com o ―Cristo
joanino‖.
A fé não é capaz de viver de
―interpretações‖, nem mesmo das mais profundas e belas. A fé vive de
realidades. Quando João não reproduz as palavras decisivas de Jesus porque as
ouviu assim, mas opina a partir de sua compreensão posterior de Jesus, (―Na
verdade Jesus deveria ter falado assim‖), então nós, como fiéis, estamos numa
situação complicada. Como ainda poderíamos interpretar seriamente as afirmações
―Eu sou‖ de Jesus, se tivéssemos de pensar que o próprio Jesus nem sequer as
pronunciou? E como podemos acreditar que um israelita – pois é isso o que o
autor do evangelho de João é – teria inventado livremente essas palavras de
Jesus que evocam o nome de Javé, e que as teria colocado nos lábios de Jesus?
Talvez seja verdade o que recentemente é salientado nesse contexto, que
anedotas e afirmações inventadas seriam capazes de caracterizar melhor um
personagem histórico que relatos historicamente confiáveis. Contudo, a situação
se torna muito diferente quando eu próprio quero fazer uso das promessas de uma
pessoa poderosa. Então de nada me servirá a mais poderosa e ―característica‖
palavra, se for inventada. A pessoa tem de ter dado sua promessa de uma forma inequívoca,
para que eu possa fundamentar sobre ela uma reivindicação. Se Jesus não
pronunciou de fato sua poderosa palavra ―Eu sou…‖ com as promessas
subseqüentes, de nada nos servirá no caso mais sério, p. ex., ao morrermos, que
João assegure a partir de sua compreensão posterior de Cristo que Jesus
―poderia‖ ter falado dessa maneira, sim, que na realidade ―deveria‖ ter falado
desse modo.
Contudo,
toda essa concepção de projetar para trás, para a descrição do Jesus histórico,
a compreensão posterior de Cristo é refutada pelo próprio evangelho de João. O
autor anotou pessoalmente em algumas passagens que os discípulos compreenderam
essas palavras de modo correto apenas mais tarde, depois da ressurreição de
Jesus (p. ex., Jo 2.22; 7.39; 12.16). Com isso, porém, atestou justamente que
ele não inventou nem modificou essas palavras de seu Senhor, mas sim que as
reproduziu em sua forma original, enquanto naquela época ele e os demais
discípulos ainda careciam do entendimento dessas palavras, ficando claras
somente mais tarde, após a Páscoa. Se ele, porém, tivesse relatado parte por
parte de acordo com sua compreensão posterior, então ele não teria tido mais
nenhum motivo para destacar em determinadas passagens específicas que nesse
ponto somente uma percepção posterior teria descortinado o sentido mais
profundo da questão.
No fundo, deparamo-nos com uma
questão de confiança. Não temos condições de verificar objetivamente se João
reproduziu correta e fielmente os discursos de seu Senhor. Contudo,
constantemente vemos em seu evangelho o empenho em relatar com exatidão, em
todos os detalhes, a atuação de Jesus. Será que de repente, na questão
principal de seu livro, nas palavras e discursos de Jesus, ele deixaria de ser
confiável, apresentando-nos considerações pessoais ao invés de palavras de seu
Senhor? Será que um discípulo, sobre o qual os amigos atestam expressamente a
veracidade de seus testemunhos (Jo 21.24), e que assegura em sua carta: ―O que
temos visto e ouvido anunciamos também a vós‖ (1Jo 1,3), faria isso? Podemos
ler os discursos de Jesus em nosso evangelho com a firme confiança de que neles
ouvimos o próprio Jesus falando conosco.
4 – A concordância interna
com os sinóticos
Ao olharmos para os sinóticos,
não pretendemos observar unilateralmente apenas as diferenças, mas também a
concordância interna. Será que a pessoa que teve a ousadia de transmitir a seus
discípulos a colossal palavra: ―Vós sois a luz do mundo‖, não teria afirmado
primeiro sobre si próprio: ―Eu sou a luz do mundo‖? Também nos sinóticos se
encontram palavras da incomparável majestade de Jesus, e também elas estão
imbricadas com esse extraordinário senso de envio que se expressa na afirmação:
―Eu vim‖ (p. ex., Mt 10.34-37 em combinação com Dt 33.9; Mt 5.17; 9.13; 18.11;
20.28; Lc 6.46 em combinação com Lc 12.49). Desde sempre se constatou a
conotação ―joanina‖ no autotestemunho e convite redentor de Mt 11.25-30.
Cumpre compreender as
diferenças permanentes entre João e os sinóticos. Não há nelas uma razão
compulsória para colocar em dúvida o autotestemunho do evangelho de João e a
tradição eclesiástica sobre a autoria do apóstolo João.
III – A terminologia dos
discursos de Jesus
Entretanto, que dizer da
terminologia dos discursos de Jesus em João? Na verdade, também nos sinóticos a
pregação de Jesus mostra os grandes contrastes de luz e trevas, vida e morte,
uma vez que também neles essa proclamação convoca para uma decisão definitiva.
Porém em João os discursos de Jesus são dominados e moldados pelos contrastes
de ―luz e trevas‖, ―espírito e carne‖, ―verdade e mentira‖, ―vida e morte‖,
―ser do alto‖ e ―ser de baixo‖. A pesquisa descobriu correlações para eles na
gnose, motivo pelo qual considerou o evangelho de João um escrito tardio que,
usando termos e conceitos gnósticos, travou uma luta contra a gnose. É óbvio
que para nossa surpresa os achados dos manuscritos no deserto de Judá e as
descobertas do pensamento e da vida da comunidade ―monástica‖ de Cunrã nos
mostraram que a ―terminologia gnóstica‖ podia ser encontrada não somente na
gnose helenista posterior, porém já em época pré-cristã, numa comunidade
rigorosamente judaica. E essa comunidade vivia nas proximidades da região do
Jordão, na qual atuou João Batista. Os sacerdotes de Jerusalém e os grupos
fariseus influentes certamente tinham conhecimento de ―Cunrã‖, que estava a
apenas 20 km de Jerusalém. Ademais, as concepções de Cunrã, com sua áspera
crítica ao judaísmo oficial, de forma alguma eram ignoradas por aqueles grupos
que, numa expectativa viva, aguardavam a derradeira ação salvadora de Deus.
Conseqüentemente, é possível que o próprio Jesus tenha usado uma terminologia
que não era incompreensível a amigos e inimigos em Jerusalém.
IV – O objetivo do evangelho
de João
Somente entenderemos de forma
apropriada o evangelho de João se tivermos diante de nós o objetivo que João
persegue com seu evangelho.
a – Já havia outros evangelhos
escritos nas mãos da igreja. Por que, pois, também ele escreve um livro seu? Já
na igreja antiga havia a opinião de que a intenção de João teria sido
apresentar Jesus de forma mais ―intelectual‖, ―interior‖, mais ―filosófica‖,
para usar um termo mais moderno. O evangelho segundo João, por isso, também foi
prezado especialmente em círculos ―intelectuais‖ e filosóficos. Não obstante,
essa opinião é equivocada. João leva a ―encarnação‖ e, portanto, a vida bem
real do Filho de Deus a sério. Por outro lado, João não visa mostrar-nos a
atuação de Jesus em toda a sua amplitude. Isso os sinóticos já haviam feito.
Ele se concentra num único tema, que lhe parece ser o verdadeiro tema da vida
de Jesus. Ele o expõe logo na abertura de seu livro: O Verbo eterno, por meio
do qual o mundo foi criado, vem com sua glória, envidado pelo amor de Deus,
para salvar o mundo; porém os seus não o acolhem! Todo o evangelho de João
trata da luta de Jesus com seu povo e seus grupos dirigentes, os sacerdotes e
fariseus na Judéia, os zelotes na Galiléia. Também os sinóticos têm consciência
do contraste entre Jesus e os líderes do povo, descrevendo-o em muitas
passagens por meio de narrativas isoladas e palavras concisas. Sabem que disso
resultou a cruz de Jesus. De modo bem diferente, porém, João faz com que se
experimente a profundidade do conflito e a constante escalada da luta até a
cruz.
Pelo fato de que a controvérsia
de Jesus com Israel e o empenho para conquistar seu povo preenche todo o
evangelho de João, houve quem o quisesse entender como um ―escrito missionário
em prol de Israel‖. Essa hipótese, porém, ignoraria um traço muito peculiar que
confere a esse evangelho sua característica especial. Logo de início Jesus é
mostrado não apenas como o Messias de Israel, mas como Mediador da criação, que
desde os primórdios se relaciona com o mundo inteiro. É por isso que ele
também, vindo como Salvador, está ―no mundo‖, e é ―o mundo‖ que não o conhece
(Jo 1.10). João Batista vê em Jesus o Cordeiro de Deus que carrega não somente
as transgressões de Israel, mas ―os pecados do mundo‖ (Jo 1.29). Em Jesus Deus
revela como ele não apenas ama o povo eleito, mas ―ama o mundo‖ (Jo 3.16). Por
isso os samaritanos que aceitaram a fé o confessam com razão como ―Salvador do
mundo‖ (Jo 4.42). O ―Rei‖ que tem a incumbência de dar testemunho da verdade
(Jo 18.37) não é somente o ―Rei dos judeus‖ (isso ele obviamente também é!),
mas um Rei de todas as pessoas, porque todas carecem da verdade, assim como
todas também estão sujeitas à morte e precisam daquele que é ―a ressurreição e
a vida‖ (Jo 11.25). É bem verdade que Jesus permanece fiel a Israel até a morte
e não parte em direção dos gregos (Jo 7.35; 12.20ss). Contudo, justamente como
aquele que foi exaltado para a cruz ele ―atrairá a todos para si‖ em dimensões
universais (Jo 12.32).
Inversamente, por isso também
se torna claro que apesar de sua eleição, que permanece incontestável (Jo
4.22!), Israel se torna, por causa de sua incredulidade, o representante
especial do ―mundo‖ hostil a Deus. Aqueles que se gloriam de ser filhos de
Abraão, são filhos do diabo (Jo 8.44), o qual é ―o príncipe deste mundo‖.
Desse modo, o evangelho de
João, enquanto descreve a luta de Jesus por Israel, visa incessantemente a
importância universal e o envio mundial do Filho de Deus.
b – Na luta por Israel não
estão em jogo os detalhes, por mais que esses ―detalhes‖, como a questão do
sábado, se destaquem também em João (Jo 5.9-16). Contudo, João deixa mais
explícito do que os sinóticos que está em jogo somente uma única coisa, a
atitude frente ao próprio Jesus, a fé ou incredulidade diante dele. Isso
confere ao evangelho de João uma ―simplicidade‖ e, se quisermos usar essa
expressão, sua grandiosa ―monotonia‖ em comparação com os sinóticos. Em sua
essência, os sinóticos não defendem outra coisa (cf. Lc 10.42; Mt 7.24-27;
11.20-30; 19.21; 19.28s; etc.). Porém em João torna-se explícito na própria
pregação de Jesus o que mais tarde ensina a mensagem dos apóstolos, a começar
pela do apóstolo Paulo, a judeus e gentios: ―Crê no Senhor Jesus Cristo, e
serás salvo, tu e tua casa‖ [At 16.31]. João nos mostra que essa mensagem não
era a invenção dos apóstolos, mas que o próprio Jesus desafiou as pessoas dessa
maneira na decisão de fé em sua pessoa: ―Se não crerdes que eu sou morrereis em
vossos pecados‖ (Jo 8.24).
c – Em decorrência, não é de
admirar que o próprio João visse no ―crer‖ o alvo de seu testemunho de Jesus.
No final de sua obra ele fala da plenitude dos sinais de Jesus, os quais não
conseguiu considerar todos. ―Esses, porém, foram registrados para que creiais
que Jesus é o Cristo, o filho de Deus, e para que crendo, tenhais vida em seu
nome‖ (Jo 20.31). Vale observar que nessa frase João não apenas opta pela
formulação ―para que venhais a crer‖, mas que usa a forma verbal que expressa a
continuidade de uma ação. Seu evangelho não visa ser propriamente um escrito
missionário, mas dirige-se à comunidade crente, a fim de fortalecê-la,
depurá-la e aprofundá-la na fé.
É possível que João tivesse em
mente o perigo vindo de uma forma de ―gnose‖ que tinha o intuito de ela mesma
ser cristã, sim, que afiançava elevar o cristianismo de fato à sua verdadeira
sublimidade, requestando ativamente as igrejas. Já na carta aos Colossenses,
precisamente na Ásia Menor, deparamo-nos com inícios dessa gnose cristã com
suas ―percepções superiores‖ e seus métodos especiais de vida espiritual (Cl
2.8,16-23). Como contemporâneo de João vive e atua em Éfeso o gnóstico
Querinto. Por isso, pode bem ser que diversos pontos sejam especialmente
realçados nesse evangelho com vistas à gnose. No entanto, deixaríamos de
compreender toda magnitude do evangelho de João se víssemos nele apenas um
escrito antignóstico. O ―evangelho segundo João‖, como o chamava a igreja
antiga, é realmente o evangelho pleno, integral, escrito para mostrar Jesus aos
leitores de tal modo que sua fé possa agarrar-se em Jesus e encontrar em Jesus
o caminho, a verdade e a vida.
V – A integralidade do
evangelho de João
Que se pode afirmar sobre a
integralidade desse evangelho? Será que pode ser seriamente questionada? Não é
justamente o evangelho de João coeso e integral em seu estilo inconfundível, em
sua estrutura clara?
No entanto, desde sempre chamou
atenção que o cap. 6 de repente mostra Jesus na Galiléia, sem que tenha sido
dito algo – como em Jo 4.1-3 – a respeito do fato e das razões de mais um
retorno para a Galiléia. Não seria bem mais fácil que o cap. 6 viesse após o
cap. 4? E, se o cap. 5 fosse subseqüente apenas ao cap. 6, não seria muito mais
compreensível a palavra de Jesus em Jo 7.21, com sua referência ao milagre narrado
no cap. 5?
Será possível que aconteceu uma
inversão posterior, equivocada, dos capítulos? Uma vez que todos os manuscritos
sem exceção trazem o texto assim como o possuímos hoje, a troca dos capítulos
deveria ter acontecido já na primeira edição do livro. Para tornar isso mais
compreensível, imaginou-se uma ―troca de páginas‖. Nesse caso o evangelho de
João não teria sido publicado como ―rolo‖, mas como um ―códice‖, escrito sobre
folhas. Porém, trocar as folhas por engano somente teria sido possível se tanto
o cap. 5 quanto o cap. 6 preenchessem exatamente uma página, sem que restassem
linhas para uma nova página.
H.
Strathmann (NTD, vol. IV/1955) sugere uma solução para essa questão, que ao
mesmo tempo poderia tornar compreensíveis diversas outras irregularidades nesse
evangelho. Se João empreendeu a redação de seu livro somente em idade avançada,
talvez ele não conseguiu mais terminar pessoalmente a última formatação.
Justamente por isso um grupo de discípulos e amigos teve de acrescentar o cap.
21 e assumir a responsabilidade pela publicação da obra. Nesse processo
certamente poderia ter acontecido que a ordem correta dos cap. 5 e 6 não fosse
notada e, por isso, já no manuscrito original o texto fosse escrito da maneira
como o encontramos em todos os manuscritos. Essa solução, porém, não é mais do
que uma hipótese digna de consideração.
A paz do Senhor e até a próxima postagem!
Referências bibliográficas:
Comentário
Esperança, Evangelho de João; Comentário Esperança, João (4). Editora Evangélica Esperança;
Curitiba.
Prof°: Euler
Lopes